Ariana Kukors anunciou hoje sua aposentadoria das piscinas, aos 24 anos. Nadadora norte-americana, ela é recordista mundial dos 200 medley, e foi quinta colocada na prova nas últimas Olimpíadas.
Traduzindo: é uma nadadora fantástica e de altíssimo nível, mas que está longe de ser uma das melhores da história, friamente falando. Provavelmente não vai sair manchete em nenhum veículo brasileiro que não seja especializado em natação, diferente do que aconteceu quando Laure Manaudou parou, por exemplo.
Mesmo assim – ou pensando bem, por isso mesmo – sentirei muita falta dela. Estou um pouco afastada da natação e do esporte, e esse anúncio veio para me trazer muitas lembranças e despertar emoções que estavam guardadas desde que voltei de Barcelona.
Tenho uma atração especial por competições seletivas. Sei que um Trial existe como suporte para que exista um Mundial e uma Olimpíada, as competições que “importam de verdade”. Mas sou fascinada pelas histórias por trás da conquista de uma vaga no lugar mais desejado por todos. Adoro a ideia dessa barreira clara e objetiva que você precisa superar para chegar à algum lugar. Você pode até ter um clube queridinho da confederação, roubalheira, preferidos e preteridos, atletas corretamente contemplados com bolsa e outros erroneamente deixados de fora, mas não importa: na natação, ou você faz índice/fica entre os dois primeiros (ou seja lá qual for o critério adotado), ou está fora. Não existe lobby de agente de jogador. Não existe pressionar o técnico para mudar a convocação. Não existe Bernardinho brigar com Ricardinho e tirá-lo do grupo.Os Trials são um passaporte para o grande evento sem precisar passar pela subjetividade do cara do Consulado que te concede ou não o visto. Ninguém te dá esse passaporte: você conquista.
Para alguns, isso é uma mera formalidade. Atletas lutam a vida inteira para participar de um estadual enquanto para outros o índice sai todo dia no primeiro tiro da série de A2 no treino, quase soltando. O mesmo para o nacional de categoria, nacional absoluto, seleção de categoria, e isso segue em todos os níveis. A peneira só vai afunilando cada vez mais.
Até que chegamos ao último degrau, onde as coisas ficam um pouco estranhas.
Tipo aquele 50 livre no Maria Lenk desse ano, onde um cara desse último e altíssimo nível mostrou que no não há nada garantido – e simples assim, o quarto colocado nas Olimpíadas fica sem vaga para o Mundial. Ou como é em centenas de provas nos Trials mais fortes do planeta. Estados Unidos. Você pode ser o recordista mundial ou a bicampeã olímpica da prova, se ficar em terceiro, fica sem passaporte. Como aconteceu com Coughlin no 100 costas ano passado.
E é aqui que chegamos a Kukors, recordista mundial da prova de 200 medley desde o Mundial de Roma, 2009 – pelo próprio aposto, claramente uma das favoritas à vaga. Para entender o que estava em jogo, precisamos voltar quatro anos.
O mesmo local: Omaha, Nebraska. A mesma prova: 200 medley. Aos 19 anos, Kukors virou na frente faltando apenas 50 metros para garantir seu lugar em Pequim, depois de um parcial de peito magistral. Mas….
Por oito centésimos, Kukors foi superada pela veterana Natalie Coughlin, e ambas por Katie Hoff. Ficou fora das Olimpíadas.
Um ano depois, nos Trials para o Mundial de Roma, Kukors foi terceira em sua principal prova de novo. Mas foi terceira também no 200 livre, conquistando o direito de nadar o revezamento 4×200. Depois, Kukors ganhou o direito de nadar sua principal prova com a desistência de Elizabeth Pelton, que abriu mão de sua vaga para focar no 100 costas.
Herdeira da vaga, Kukors bateu o recorde mundial na semifinal. E na final de novo, conquistando sua primeira medalha de Mundial, logo um ouro, um mês depois da frustração de ter ficado sem vaga na seletiva.
Não é por acaso que sua declaração pós prova foi essa: “Nos últimos 50, eu vi a Stephanie [Rice, campeã olímpica] chegando, só queria colocar minha mão na parede primeiro. Eu nunca deixei de acreditar. Tive muitos altos e baixos na carreira. Sonhos realmente se tornam realidade, e eu tenho um grande técnico e uma grande família que nunca deixaram de acreditar em mim”.
Voltemos a 2012.
Como recordista mundial – marca que permanece imbatível até hoje – Kukors seria evidentemente uma das favoritas em qualquer 200 medley que disputado desde 2009. Mas em Omaha, 2012, trials para Londres, ser recordista mundial não queria dizer praticamente nada. Kukors não conseguia dormir. Só conseguiu depois de um bom tempo, enquanto a irmã segurava sua mão.
Em uma prova tensa, ela foi segunda – batendo na chegada, ironia do destino, justamente Elizabeth Pelton, aquela que desistiu da vaga em Roma e “permitiu” o título e recorde mundial.
Essa é Kukors depois da prova:
Essa é Kukors depois de abraçar sua mãe e suas três irmãs:
Essa é Kukors encontrando sua equipe.
Um dia depois da prova, ela disse em uma entrevista que quando as pessoas perguntavam o que ela fazia e ouviam como resposta “sou nadadora”, logo perguntavam: “Já foi para as Olimpíadas?”. A resposta: “Quando você diz: não, mas eu estive no Mundial, elas ficam, ‘ah legal’. Ninguém está nem aí. As Olimpíadas são algo com que você pode se identificar. Então ter esse grande objetivo, ter dúvidas como eu tive ontem e conseguir é simplesmente um sentimento incrível.”
Nessa entrevista logo após a conquista, dá para ver que ela nem hesita em escolher um momento entre o título mundial e o passaporte olímpico.
Não acho que estar em uma Olimpíada faz de ninguém herói ou coitadinho como nossa imprensa às vezes gosta de carimbar. Mas é bom saber que para cada Phelps e Bolt, monstros para quem fazer parte do time olímpico é quase trivial, existem 100 grandes atletas que precisam se beliscar quando colocam os pés na vila olímpica. Amo Phelps de paixão, e que bom que ele existe. Mas que bom que existem os outros 100 – e também os 200 que ficaram fora na seletiva, e os 300 que estão nos clubes treinando para chegar nela- sem eles, a natação não faria o menor sentido.
Boa sorte Kukors, vou sentir sua falta.