Finalista olímpico em Atenas-2004, Gabriel Mangabeira é um dos principais nadadores de borboleta da história do Brasil. Recordista brasileiro de 100 borboleta, além de Atenas, Manga esteve em Pequim, em 2008, e participou de quatro Mundiais. Em Roma, foi finalista no 100 borboleta, e esteve no revezamento que terminou em quarto lugar no 4×100 medley. Aposentado das piscinas desde o meio do ano passado, Manga falou sobre sua carreira, a importância do técnico na natação, e o que acha determinante para o sucesso nas piscinas: treino.
Beatriz Nantes – Você ainda acompanha natação?
Gabriel Mangabeira – Acompanho as competições principais: Mundial, seletiva. Não acompanho o dia a dia, mas eu fico na torcida, nos bastidores.
BN – Como foi a decisão de parar? Você sente falta?
GM – Na verdade foi bem tranquilo. Eu já estava num processo de parar, não tão motivado. Ao mesmo tempo, estavam surgindo outras oportunidades. Foi uma transição tranquila. Eu sinto falta do pessoal e de competir, mas de treinar não sinto falta não…
BN – E antes, você gostava de treinar?
GM – Ah, eu achava que era um mal necessário, não existe outro caminho.
BN – Voltando para o começo da sua carreira, como você começou a nadar?
GM – Eu comecei com meu avô, que era professor de natação lá em Recife, no clube da Aeronáutica. Eu ia para a praia e de lá para o clube com ele. Sempre saia com o lábio roxo. Eu era daquelas crianças que adoravam piscina, era um sofrimento para me tirar. Depois disso voltamos para o Rio de Janeiro, que foi onde eu nasci. E eu segui o caminho natural, foi de escolinha, petiz, infantil, e foi indo.
BN – Em que momento você começou a levar mais a sério? Desde as categorias de base você já queria “ser nadador”?
GM – Sempre tive muita facilidade quando era novo. Depois de ver as Olimpíadas de 1992, eu falei: “quero ir, mas quero ir para arregaçar”. Não queria só participar. A partir dali, eu comecei a levar muito a sério. Mas sempre fui meio preguiçoso para treinar, meio rebelde. Isso mudou depois que eu perdi a seletiva para as Olimpíadas de Sidney em 2000 [Mangabeira ficou a 14 centésimos do índice olímpico nos 100 borboleta]. Eu vi que ou eu levava a sério a natação, ou ia estudar e procurar outra carreira.
BN – Foi nesse momento que você foi para os EUA.
GM – Sim. Cheguei nos EUA [na Universidade da Flórida] e eu era um atleta de seleção brasileira juvenil, já tinha ido à sulamericano. Mas lá, tinha mais uns 27 nadadores comigo. Foi ali que me deu um estalo. Ou eu me mato de treinar, ou vou perder das meninas.
BN – Como foi isso?
GM – Não é de um dia para o outro, foi um processo. É uma rotina difícil: entrar na água de madrugada, fica até as 6h, não podia atrasar. Ele falava, tem uma fila de outros 10 caras querendo fazer exatamente o que você não quer. Era uma coisa diária, essa conscientização. E isso é uma coisa que eu levo do esporte, para sempre. O esporte prepara você para a vida mesmo.
BN – Quando você diz “ele”, era o Anthony Nesty? [Nadador do Suriname, campeão olímpico na prova de 100 borboleta em Seul 1988 e prata em Barcelona-1992]
GM – Sim, o Nesty, e o Gregg Troy também. Lá é diferente do Brasil. Era todo mundo treinando junto, e na série dava uma separada. Eu treinava mais com o Nesty no verão, o resto do ano com o Troy. Mas o Troy que cuidava mais das planilhas. Às vezes eu treinava com o meio fundo, às vezes com a velocidade. E tinha a faculdade no meio. Se tirasse nota baixa, não entrava no treino, não tinha jeito.
BN – Chegou a acontecer com você?
GM – Não chegou a acontecer, mas teve uma época que foi quase. Em 2003, teve o Mundial e o Pan, perdi um monte de aula. E não tem conversa, se eu não tirasse a nota, não ia treinar. Vi vários casos. Mas consegui me recuperar a tempo.
BN – Esse Mundial, em Barcelona, foi seu primeiro. Como foi? Você ficava muito nervoso em competição?
GM – Eu era muito novo. Em 1999 eu ficava bem nervoso. Depois foi melhorando. Em 2003 eu lembro que tive uma lesão no ombro, estava meio parado.
BN – O índice para Atenas, como foi?
GM – Foi na última seletiva, na última hora. Foi uma prova muito marcante, eu tinha 54″2 e o índice era 52″8. Eu fiz 52″7. Simplesmente pulei os 53 segundos direto pros 52”! Foi um momento bem legal, o Anthony estava lá comigo.
BN – E depois, você voltou para a Florida para terminar a preparação até os Jogos?
GM – A gente voltou para a Flórida, e depois a CBDA fez uma programação, com altitude e outras competições. Nisso tudo, eu tive a ajuda do Marcelo Jacaré, que era do clube que eu representava na época, e com quem eu já tinha treinado no Junior. Eu sentia que precisava de alguém junto comigo nesse momento. Não ia rolar me mandarem planilha, e eu também entendia que eles não podiam largar a faculdade lá na Flórida para seguirem comigo. O Jacaré me ajudou muito nesse processo. Essa parte do técnico é ao mesmo tempo uma ciência e uma arte. Ciência porque o cara tem que saber planejamento, fisiologia… Mas é arte porque não tem receita de bolo, a sensibilidade é muito importante. Nos últimos anos, por exemplo, treinava eu e o Henrique Martins juntos. Nós nadávamos a mesma prova mas somos totalmente diferentes fisicamente. Eu, mais alto e pesado, e ele um atleta bem mais leve. Como você faz um treinamento diferente e eficiente para dois indivíduos tão diferentes? Por isso eu valorizo sempre o técnico. Ele faz o papel de psicólogo, nutricionista, vê saída, virada, tudo. Sempre tive excelentes técnicos, e eu sempre procurei o que deixava meu treino melhor.
BN – Algum desses treinadores te marcou mais?
GM – Todos que eu passei me ensinaram muito. Ou como nao fazer as coisas, ou como fazer. Cada um tem uma contribuição enorme. Os que marcam são os que estão na hora das conquistas, os que ensinam mais são os que estão do seu lado quando você nao está tão bem. Então é injusto eu mencionar um só. Todos tem uma importância igual.
BN: Como foi chegar às Olimpíadas e já chegar na final?
GM: Ah, foi um sonho né. Você sonha, ai vai para uma Olimpíada, em Atenas, onde tudo começou. Foi demais. Eu estava com o 18º tempo, consegui ir para a semifinal com o 11º tempo e terminei a final em 6º. É uma coisa que eu olho com muito orgulho, ter conseguido chegar lá em condições de disputar. Não ganhei, mas ganhar ou perder é consequência. Depois eu tentei replicar isso todos os anos. A partir de lá eu virei outro atleta. Você começa a ver como é complicado chegar lá, como tem que treinar muito. Eu gostava também de ajudar quem estava do lado, a molecadinha, é interessante ver treinando.
BN: Você continou motivado depois de Atenas? Continuou treinando na Florida?
GM: Tirei 6 meses de férias, porque tinha que me formar, e depois voltei para o Brasil. Às vezes quando você perde uma prova, desanima, claro, mas eu sempre focava nos ciclos olímpicos. É difícil estar bem os 4 anos seguidos. Eu tinha consciência que ia ter altos e baixos. No Brasil, eu treinei em Belo Horizonte (Minas Tênis), mas não me adaptei muito. Depois tive a oportunidade de treinar na Itália de novo, com um técnico que já conhecia. Treinei uma época lá, outra na Alemanha. Foi legal porque a gente competia sempre, nas competições do circuito europeu. É legal porque você sempre vê um campeão mundial, é uma disputa interessante. Mas acho que o fundamental não é isso. Acrescenta, mas não é determinante.
BN: O que é determinante?
GM: Treino. O fundamental é treino.
BN: Você tem algum arrependimento?
GM: Acho que não. Me orgulho de todos os atos, bons e ruins, todos foram uma lição. A coisa boa de perder é o aprendizado.
BN: Qual foi o melhor momento da sua carreira?
GM: Acho que teve alguns, não um só. No começo, na Florida, foi bem legal. Depois das Olimpíadas também. E durante a Olimpíada, claro. Depois de Pequim, treinando em São Paulo também foi muito bom.
BN: Em Pequim você ficou nas eliminatórias, e um ano depois em Roma você foi finalista. Como foi?
GM: Eu acho que o interessante dos Jogos é que é o dia. Tem que estar bem e 100% com dia e hora marcada. Naquele dia eu não estava. Pode acontecer com qualquer outro. Isso é interessante: na Olimpíada, apaga o histórico dos atletas. O que você fez até lá, acabou. No começo eu fiquei um pouco chateado, mas logo comecei a pensar no outro Mundial. Isso me ajudava: eu ficava pra baixo, mas depois já queria tentar melhorar.
BN: E Roma? Teve um gosto de volta?
GM: Roma eu estava numa outra fase. Eu não senti como uma volta porque sempre me senti brigando, nunca me senti fora do círculo de nadador de borboleta. Ali você pensa: tem 20 caras, para disputar 8 vagas, 3 vão chegar no pódio e só um vai ganhar. Eu pensava sempre em chegar entre os 8, para então focar na final. Tem muita gente que atropela e pensa já em recorde mundial. Claro, é um pensamento que tem que ter, mas tem um processo ali antes.
BN: Tem alguém que você diria que foi seu principal adversário?
GM: Acho que não. Eu não ia focar em um, tinha tantos. Eu sempre pensava: “se eu não treinar bem hoje, tem PELO MENOS uns 10 caras que estão treinando muito nesse exato momento”. Numa quarta-feira à tarde, numa série de perna, se eu treinar mal, naquela mesma quarta, teriam pelo menos umas 20 pessoas no mundo treinando para chegar na frente. Eram todos esses os meus adversários.
BN: E você conseguia pensar nisso todo dia?
GM: Sim. Claro que é impossível de fazer isso todo dia, mas ai que entra a parte do técnico, ai que entra a genialidade de saber puxar mais um pouco, saber tirar o pé, até onde vale a pena passar do limite do seu corpo. Muita gente acha que é só treinar, mas não é: você passa o dia inteiro em função de um treino. Descansa, suplementa, dorme, faz massagem, fisioterapia. Se você fizer tudo certinho, talvez, você vá ter uma pequena chance. Mas essa pequena chance era tudo o eu queria. Era essa mentalidade que eu saía de casa todos os dias. E você se cerca de pessoas que estão na mesma mentalidade que você, isso te ajuda. Essa camaradagem, embora seja um esporte individual, influencia muito.
BN: Você nadava os 100 borboleta, mas nadava costas também e tinha bons resultados de livre e medley. Que prova você mais gostava?
GM: Os 100 borbo era a prova preferida mesmo, sempre foi. Eu gostava do costas também, as provas mais curtas. Quando eu cheguei na Flórida, o Troy queria que eu nadasse 200 costas, eu odiava! Daí eu me destacava no borbo nos treinos, não tinha jeito.
BN: E agora? Quais os objetivos pós natação?
GM: Agora eu trabalho com meus pais em uma empresa de construção civil. Fico entre Rio e São Paulo, trabalhando com isso. Vou na academia, nado no mar, na praia. Agora estou recuperando, mas quando parei, fiquei meses sem fazer absolutamente nada, ganhei 12kg em dois meses.
BN: Você fazia uns eletrônicos também né?
GM: Isso foi meio uma fase. Uma coisa pra passar o tempo, pra não ficar pensando como foi a série de A3…
Publicado também na Swim Brasil.
1 Comentário
rcordani
Espetáculo de entrevista! Vou citar só um trecho:
“Muita gente acha que é só treinar, mas não é: você passa o dia inteiro em função de um treino. Descansa, suplementa, dorme, faz massagem, fisioterapia. Se você fizer tudo certinho, talvez, você vá ter uma pequena chance. Mas essa pequena chance era tudo o eu queria.”
Muito bom!
04 mar 2014 10:03 pm (@Twitter)
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